A corporeidade é uma categoria
antropológica que aponta para a importância do corpo enquanto instância de
realização do humano. Na filosofia, o corpo aparece sob várias perspectivas:
hora como algo a ser descartado, por ser porta-voz dos sentidos, acusado
piamente de ser enganador do conhecimento e da realidade. Noutras ele aparece
como substrato da “vida-nua”, onde sua valoração depende das relações de poder,
onde dominação e escolha se confundem com liberdade e ação. Para o filósofo
francês Gilles Deleuze, “o que define um corpo é essa relação entre forças
dominantes e forças dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo:
químico, biológico, social, político”.
Se há um tipo de violência que me
causa maior indignação, em relação a todas as outras, é a violação de direito
sobre o próprio corpo. Mais especificamente o assédio sexual e o estupro.
Nos últimos tempos alguns casos
têm aparecido na mídia. Como o da estrangeira violentada dentro de um transporte
alternativo, no Rio de Janeiro. Ou, nessa semana, o caso da jovem violentada
por um policial militar, em Fortaleza. Ou ainda mais, o caso da banda baiana New Hit,
acusada de estuprar adolescentes que foram ao ônibus da banda pedir autógrafos.
São muitos os casos relatados. Assim como são muitos também os casos omitidos. Sempre
alguém já ouviu falar em um caso ou outro, mas parece que diante do horror
desta violência a tendência é calar e procurar “esquecer” o mais rápido
possível.
Comumente alertam-se as mulheres sobre
o risco de vestir determinadas roupas, ou frequentar certos lugares, adotar
algumas posturas. Parece, na maioria das vezes, que a mulher é a única responsável
por evitar ser violentada. Parece que “aos homens” apenas cabe a escolha de
violentar ou não. E às autoridades punir ou não. E à sociedade “abafar o caso”
ou apontar a mulher vítima de violência sexual, como alguém que protagonizou
algo tão horrível que deve ser escondida, sob a culpa que carrega, ou apontada
publicamente para servir de lição.
Sensacionalismos à parte, a violência
sexual, ao que me parece, é um tipo de violência que agrega uma série de outras
questões. É a violação física, o atentado contra a liberdade, o dano moral, a violência
psicológica e o que é mais grave, pois figura como a raiz dos demais problemas
apontados: o machismo.
Não me reivindico feminista, nem
sou militante de nenhum movimento que defenda especificamente os direitos das
mulheres, porém, compreendo por machismo uma forma de ver o mundo que tem no seu
núcleo a exclusão histórica das mulheres e a consequente violação dos direitos
humanos destinados às mesmas, assim como, toda a violência que é praticada
contra elas, pelo simples fato de serem mulheres. Normalmente, quando se fala
de violência contra a mulher, apontam-se os dados de violência doméstica,
aquela praticada dentro de relações conjugais, de proximidade parental ou entre
conviventes de várias esferas. Quando se fala de assédio sexual ou estupro é
dada outra caracterização e motivação, de forma tal que, muitas vezes, abre
brecha para discursos destorcidos, que muitas vezes são reproduzidos pelas próprias
mulheres, colocando-as como pivô de
tal situação, alegando-se a existência de comportamento imoral e naturalmente
passível de violência. A violência doméstica e a violência sexual (praticada
contra mulheres, homens e crianças) figuram no mesmo quadro de motivações,
expressa pela forma como homens e mulheres se relacionam em sociedade.
Se recuarmos um pouco na nossa
reflexão podemos nos lembrar de algo comumente citado, em se tratando das
diferenças entre homens e mulheres: o modo como são “educados”, tanto em suas
famílias, como nas escolas, comunidades, etc. Algumas mães (ou responsáveis),
quando são chamadas à atenção sobre o comportamento dos filhos, principalmente
na adolescência, quando estes se envolvem com uma menina cujos pais não querem
que namore, proferem a conhecida frase de efeito “quem tem suas cabras
que prendam, pois meu cabrito está solto”, ou algo assim. Parece algo ingênuo, e
por ser tão comum de se ver, é algo normal o fato de se cobrar da menina ou de
sua família o resguardo de sua "honra". Assim, constata-se que ainda nos dias de hoje,
embora muitas mudanças a favor das mulheres tenham sido conquistadas, prevalece
a ideia de que em termos de afetividade e sexualidade, respectivamente, uma é
tarefa da mulher e a outra do homem; e correlativamente, cabe a mulher a defesa
e ao homem o ataque; a mulher a prevenção e ao homem a possibilidade do
estupro, etc. Não quero parecer radical ou até mesmo generalista, cito esses
exemplos apenas para ilustrar a questão, que é de grande complexidade e que
está para além de qualquer achismo.
Em uma campanha da Marcha Mundial
de Mulheres que vi na internet, havia a divulgação de um banner que dizia “o machismo
mata”, e eu reitero, mata, mas antes oprime, estupra e ridiculariza a mulher
vitima de violência.
Serão necessárias mais do que muitas
campanhas de conscientização. Será necessário mais que uma coerção ostensiva
contra este crime hediondo e tão cheio de traços do que é difundido como
valores na nossa sociedade. É preciso mais do que apontar a presença do machismo
na nossa sociedade, é preciso mudar a forma como o homem vê a mulher, como a
mulher vê o homem e como ambos veem a si mesmos. A violência, como vocação
humana, não tem data pra acabar e possibilitar um mundo totalmente pacífico,
mas ela pode ser manipulada e controlada, desde que os posicionamentos a seu
respeito apontem para saídas efetivas. Prender o estuprador e fazer com que ele
“pague” pelo que fez é indispensável, assim como a rigidez da lei que pune tal
crime, mas também se deve ensinar ao menino que a mulher é semelhante a ele,
embora seja diferente, e que ela é tão livre quanto ele, tão digna e tão capaz,
portanto, não é um mero objeto de seus desejos e vontades. E vice-versa.
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