Outro dia voltando
para casa a noite, um pouco apreensiva por conta do horário, avistei um carro
vermelho parado na esquina onde fica minha parada de ônibus. Lancei o olho
rapidamente e vi que tinha um homem dentro, mexendo no celular. Quando passei ao lado do carro o homem baixou
o vidro e ficou olhando. Eu passei direto e segui meu caminho.
Um quarteirão depois
eis que o dito carro aparece. Eu continuo andando apressada, apreensiva, mas aliviada
porque tinham algumas pessoas na rua. O homem diminui a velocidade do carro a
quase nada, baixou mais o vidro e me perguntou se eu estava chateada, “Tá chateada? Tá com raiva?”,
com ar zombeteiro e com o braço para fora do carro. Minha vontade foi de pegar a
primeira pedra que vi e atirar contra ele, mas apenas segui meu rumo
e ele dobrou na rua seguinte achando graça.
Fiz esse relato na
ocasião para algumas pessoas, e as suas reações foram as mais diversas. Teve
gente que achou graça e perguntou “por que você não atirou a pedra nele?”, e outros
que apenas acharam exagero da minha parte se aborrecer com uma “besteira dessas”.
Mas eu pergunto, onde reside a “besteira”, no fato dele não ter feito “nada
demais” comigo naquele momento ou no fato de me sentir ofendida com uma
abordagem, ao meu ver, desnecessária?
Ser mulher, andar de
ônibus e ter que ir caminhando da parada de ônibus até a minha casa, depois das
21h, não é algo tão simples como parece. Sempre fiz o mesmo itinerário, nunca
tinha me incomodado com abordagem alguma, nem mesmo quando quase fui assaltada
por duas vezes estando próxima a esse caminho. Mas o que é que dá direito a
alguém de acompanhar uma pessoa, sem ser solicitado, e soltar um comentário
desses, com a visível intenção de intimidar e constranger (além dessas visíveis
intenções)?
Não faz muito tempo
ouvi (li) de um colega de curso (filosofia) que as mulheres atualmente são mais
vitoriosas do que historicamente vítimas do machismo. E mais recentemente vi nas redes sociais
uma campanha que defendia algo parecido com “não precisamos do feminismo, pois não nos fazemos de
vítimas”. Será que estamos falando da mesma coisa? Vejamos.
Nesse breve relato de
um acontecimento “banal” (comum ao cotidiano de muitas mulheres) me coloquei como
agente da situação, como “quem se incomodou”. E como já se sabe, o tratamento “popular”
para quem se incomoda é a conhecida máxima: “os incomodados que se retirem”. Mas eu não me retiro, logo, para facilitar a nossa reflexão, vamos inverter essa lógica: o agente da situação será
o homem do carro vermelho, que se incomodou com a minha presença na rua depois
das 21h. Ele é o agente da situação, pois representa a figura que normalmente não é convidada a se retirar. O
“outro” da situação é sempre quem atravessa o seu caminho, possivelmente
mulheres andando sozinhas na rua depois das 21h. E o que é o outro?
Simone de Beauvoir, em
O Segundo Sexo, parte I, quando fala dos mitos sobre as mulheres defende que a
mulher é colocada socialmente como esse outro em tempo integral. Pois, ser homem
e fazer qualquer coisa a qualquer hora é algo normal. Ser mulher é fazer o que
for permitido por quem é agente da situação. Ela diz: “Aos olhos dos homens – e
da legião de mulheres que vêem por esses olhos – não basta ter um corpo de mulher
(...) ‘a verdadeira mulher” é a que se aceita como o Outro” (p. 307 – 308). Um outro sem alteridade. Alteridade é quando dois outros dialogam.
Aceitar-se como um outro sem alteridade é aceitar que não se pode andar pela rua a hora que se quer (isso
independentemente das limitações sociais frutos da violência urbana). É aceitar
que qualquer um/a diga o que quer, do jeito que quer, na hora que quer sobre
você. É aceitar que façam com você o que e como se quer. É aceitar ser
violentada na sua subjetividade e objetividade. É aceitar que o estupro que
você sofre é conseqüência da roupa que você usa, do caminho que você faz e do
horário que decidiu sair, ou seja, que a culpa é sua. Entendemos como estupro
não “somente” o ato sexual forçado, mas tudo aquilo que interfere na autonomia
de um sujeito, homem ou mulher.
Agora me conte um caso parecido com esse, com
a mesma conotação, onde esse outro abordado e intimidado (reitero, com a mesma
conotação) seja um homem? Agora sim podemos falar de machismo e feminismo e sobre quem precisa de quem.
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